Em 15 de outubro de 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp 2.137.415/SP, assentou uma importante e atual evolução no Direito de Família e Sucessões: reconheceu a possibilidade de dupla maternidade em casos de inseminação artificial caseira entre mulheres em união estável, mesmo sem participação de clínica especializada. O entendimento partiu da relatoria da Ministra Nancy Andrighi e foi amplamente divulgado no Informativo STJ nº 830.
Trata-se de um avanço significativo que trata diretamente dos direitos envolvidos: o direito à filiação, à igualdade familiar, ao planejamento familiar e ao princípio do melhor interesse da criança.
A argumentação do STJ parte da aplicação analógica do art. 1.597, V, do Código Civil, que presume a filiação em casos de inseminação heteróloga no casamento, com prévia autorização do cônjuge. A Corte reconheceu que, embora o dispositivo mencione o “marido”, pode ser aplicado às uniões estáveis homoafetivas, dado o entendimento do STF (ADI 4.277/ADPF 132) que equipara estas uniões ao casamento do ponto de vista jurídico e social.
A decisão foi fundamentada em princípios constitucionais sólidos: o direito ao livre planejamento familiar (art. 226, § 7º, CF) e o melhor interesse da criança (art. 227, CF). O STJ reconheceu que, embora o acompanhamento médico seja recomendável, não há vedação expressa à inseminação caseira, e que negar o registro de maternidade da mãe não gestante geraria discriminação e desigualdade socioeconômica, favorecendo apenas famílias com recursos financeiros para custear clínicas – característica expressamente contrária ao princípio da dignidade humana.
Direitos Envolvidos:
- Direito à Identidade e Filiação: A criança ganha o direito constituído ao nome das duas mães no registro civil, reflexo do estado de filiação, resguardando-la de possíveis lacunas de identidade e negando qualquer contestação futura. A filiação traz efeitos imediatos nos direitos previdenciários, sucessórios, civis e de personalidade.
 - Direito à Igualdade e à Não Discriminação: A igualdade entre modelos familiares (uniões homoafetivas e heteroafetivas) está consagrada no ordenamento legal e constitucional. O reconhecimento da dupla maternidade reafirma a paridade de direitos, acaso dispositivos normativos infraconstitucionais criem barreiras à maternidade da mãe não gestante.
 - Planejamento Familiar e Autonomia Reprodutiva: Tratam-se de direitos fundamentais: o livre planejamento familiar, garantido pelo art. 226, § 7º, da CF, e a autonomia reprodutiva da mulher. Impedir que famílias utilizem métodos menos onerosos seria negar manifestação básica desses direitos.
 - Melhor Interesse da Criança: O foco da jurisprudência e da doutrina moderna privilegia a proteção integral da criança — não importando a via biológica ou médica da concepção, mas sim o ambiente afetivo e responsável, presente no núcleo familiar.
 - Segurança Jurídica e Estabilidade Familiar: Com a inclusão de ambas as mães na certidão de nascimento, ocorre a confirmação automática da filiação e dos deveres parentais — guarda, visitas, alimentos e herança —, evitando litígios futuros. O STJ validou esse reconhecimento mesmo sem o documento exigido pelo CNJ (Provimento 149/2023), afastando exigências formais inadequadas.
 
A decisão do STJ reconcilia elementos da teoria do direito com a prática social contemporânea. A técnica da analogia usada pela Ministra Nancy Andrighi, respaldada nos princípios gerais do Direito, encontrou fundamento na cláusula constitucional do direito de família e sucessões, demonstrando flexibilidade hermenêutica necessária para abranger arranjos familiares modernos.
Além disso, a ausência de vedação específica na legislação sobre a inseminação caseira implica que a norma jurídica não deve ser interpretada restritivamente, especialmente quando coloca em risco direitos fundamentais. Essa orientação está em sintonia com a teoria top-down, partindo da constituição e princípios para flexibilizar normas infraconstitucionais – como o art. 1.597, V, do Código Civil – e garantir a proteção patrimonial, afetiva e identitária do nascituro.
A jurisprudência, por sua vez, segue uma linha de humanização do Direito de Família, reconhecendo que a parentalidade transcende o simples vínculo biológico, sendo construída a partir de compromissos, afetos e intenção consciente de constituir família. Esse entendimento conecta-se ao debate doutrinário sobre filiação socioafetiva e multiparentalidade, temas cada vez mais relevantes nas variações familiares contemporâneas.
Embora o precedente seja robusto, alguns desafios persistem. Cartórios em diferentes regiões ainda exigem o documento clínico, procedimento que levou o casal-julgado a demandar judicialmente por mais de dois anos até alcançar o STJ. Em algumas comarcas, subsiste um certo conservadorismo, com interpretações restritivas ligadas à necessidade de prova médica formal ou à segurança genética do doador.
Além do fundamento jurídico, médicos e órgãos reguladores apontam riscos sanitários – sem rastreabilidade e com potencial para contaminações. Ainda assim, o STJ entendeu que tais preocupações não podem sobrepor direitos fundamentais quando há comprovação de planejamento familiar, afetividade e estabilidade da união estável.
Com o precedente firmando-se, é esperada uma tendência positiva: outras cortes estaduais já vêm seguindo o modelo do STJ, como o TJPR e decisões em Mato Grosso. O CNJ poderá, por meio de atualização normativa, remover a barreira dos documentos clínicos, estruturando um registro civil mais inclusivo. O CFM também deve rever suas resoluções para acolher novas formas de reprodução familiar.
O futuro aponta para:
- Regulamentação cartorial mais acessível;
 - Reconhecimento formal de multiparentalidade e filiação socioafetiva;
 - Pactos jurídicos customizáveis para planejamento sucessório diante de arranjos diversos.
 
Se você e sua companheira estão passando por essa situação ou desejam se preparar de forma segura para constituir sua família, o nosso escritório está preparado para te acompanhar. Atuamos com acolhimento, escuta e conhecimento jurídico sólido para garantir que seus direitos e da sua família sejam respeitados, da documentação inicial ao registro civil. Não hesite em nos contatar. A justiça está do seu lado. E a gente também.
Artigo escrito pela Dra. Amanda Zecchin em 21 de julho de 2025.